GENTE TENDENCIALMENTE COMUM

(resposta da Plataforma das Artes publicada na revista Sábado de 12/08/2010 com o título "Para quando 1% do OE para a Cultura?")

Não encontramos razão atendível para que um deputado da nação, um investigador, alguém que claramente não é info-excluído e comprovadamente sabe usar e navegar na internet, baseie um artigo de opinião não em factos mas antes em mitos preconceituosos que irresponsável ou intencionalmente ressuscita. E não é a primeira vez que José Pacheco Pereira (JPP) o faz. Visivelmente, nem a sua condição de deputado o obriga a um código de ética.
Se não, vejamos. Com menos trabalho e utilizando a mesma tecnologia, poderia (deveria) JPP ter visitado os sites da Direcção-Geral das Artes (DGA) e do Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA). Lá encontraria toda a legislação e regulamentação dos concursos públicos para atribuição de apoios financeiros à criação/produção artística contemporânea de iniciativa não governamental. Aí verificaria como estão definidos os objectivos, os critérios de avaliação dos projectos e programas e respectiva ponderação, a composição das Comissões de Avaliação/Júris especializados. Encontraria ainda, para cada acto concursal, a avaliação quantitativa e qualitativa dos projectos, a decisão final com lista ordenada de todos os projectos seleccionados para apoio e respectivos montantes. No caso concreto da DGA, ficaria a saber que os apoios financeiros (que cobrem apenas, em média, 50% do orçamento total de cada projecto ou programa) se destinam à produção e programação nas áreas de teatro, dança, música, artes plásticas, fotografia, design, arquitectura, artes digitais e cruzamentos disciplinares em todo o território nacional, bem como da existência e funcionamento das Comissões de Acompanhamento regionais da execução dos projectos, a obrigatoriedade de apresentação de relatórios de actividades e contas intermédios no caso dos apoios plurianuais. Poucos sectores do investimento público serão tão transparentes, publicitados, avaliados à partida e durante a sua execução.
Não é por acaso que na nossa Constituição, no capítulo dedicado aos Direitos e Deveres Culturais, surgem a par Educação, Cultura e Ciência; a função do Estado nestas áreas é equivalente; todas são áreas do conhecimento, motor do desenvolvimento socioeconómico. E na Constituição o foco dos direitos dos cidadãos está tanto na fruição como na criação/promoção.
No site da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), a congénere da DGA e do ICA no Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, encontraria JPP informações equivalentes, o mesmo espírito de concurso público, transparência e publicitação, avaliação e acompanhamento especializados.
Há no entanto uma gritante diferença na evolução do investimento público nestas duas áreas. Se em 2004 o orçamento da FCT era cerca do quádruplo do orçamento conjunto de DGA e ICA actualmente o investimento na criação artística mantém-se e essa relação é de onze para um. Evolução correcta do orçamento para a ciência e tecnologia; errada para a criação artística.
Menciona JPP um critério de avaliação que será, supostamente, “abominado” pelos profissionais das artes: o número de espectadores da arte. Ora sabe JPP que esse é um critério do mercado que é precisamente aquele a que assumidamente não pode sujeitar-se o desenvolvimento das tais áreas – educação, cultura e ciência – sob pena de estagnação, risco de extinção.
Pegando novamente na Ciência e Tecnologia, com um sistema de desenvolvimento mais paralelo à Arte. Grosso modo podemos classificar a investigação científica e tecnológica em essencial e aplicada. Enquanto a primeira, sem interesse comercial directo, pouco apreciada pela população que não conhece os seus códigos de leitura, só sobrevive com financiamento público, já a segunda, com aplicação prática na sociedade, tem potencial atracção de investimento privado. No entanto, a investigação aplicada tem de ser permanentemente alimentada pelas novas descobertas da investigação essencial; sem ela pára, deixa de evoluir.
Que seria da investigação essencial sem apoio público? E, em consequência, o que seria da investigação aplicada?
Em paralelo: Que seria da criação artística sem apoio público? E, em consequência, que seria das indústrias criativas, do empreendedorismo, da indústria têxtil – mero exemplo - e tantos outros domínios da economia?
Os artistas e demais profissionais das artes são altamente especializados, formados em instituições superiores públicas e privadas, tal como o são os médicos, os historiadores, os engenheiros… Mas antes de tudo, e tal como todos os outros, são cidadãos. Têm ascendentes e descendentes, têm de cumprir as mesmas leis, comem, bebem, pagam renda, pagam impostos. Não são gente “vulgar” – a utilização deste termo foi por certo um lapsus linguae de JPP -, mas também não são gente comum como gostariam. Apenas gente tendencialmente comum, milhares de cidadãos portugueses que pagam uma segurança social desajustada à cobertura que lhes é assegurada porque não têm quadro contributivo adequado (como JPP terá de saber já que o partido a que pertence, na Assembleia da República a que pertence, viabilizou a passagem para discussão em comissão parlamentar de propostas legislativas para criação deste quadro). Gente tendencialmente comum que todos os dias multiplica o parco investimento público que lhes é entregue contribuindo para que a criação artística contemporânea portuguesa não se extinga.
Não é de (ir)responsáveis “políticos” assim que o nosso país precisa. O que o nosso país precisa é de um sério escrutínio aos “políticos” que tem.
Portugal precisa de políticos que desenhem uma estratégia para o país. Para quando aplicar-se cá o que em todos os países ditos desenvolvidos se aplica há mais de uma dezena de anos? Para quando Portugal perceber que só pode crescer estruturadamente, que só se pode implantar nas plataformas supra-nacionais – UE, CPLP…. – através do investimento na arte e na cultura? Para quando o 1% do O.E. para a Cultura?