Um Pacto com o Diabo

Ao longo dos últimos dez anos, o executivo da Câmara Municipal do Porto recusou qualquer ligação com a criação artística contemporânea. O encerramento do Teatro Municipal – referimo-nos a um programa refletido e não a um mero edifício – foi o momento mais mediático deste processo; E com o desaparecimento do Rivoli, o Porto perdia o palco em que se mostrava ao mundo e em que recebia o mundo. Mas a desvinculação da CMP, relativamente ao que deveria ser a sua obrigação constitucional de serviço público, foi muito mais longe, pondo fim a qualquer tipo de apoio logístico e até institucional. E nesta década, a CMP elegeu também a criação artística e a cultura como um dos principais bodes expiatórios para os males do mundo: Cultura não era investimento, mas despesa; Os agentes culturais não eram parceiros mas um poderoso lobby a abater; Os bairros sociais não podiam ser requalificados enquanto se mantivesse a relação com a criação artística. E assim, por entre um populismo nunca antes imaginado, os artistas foram censurados (lembram-se da cláusula contratual que impedia criticar o executivo?), perseguidos judicialmente alimentando a paranóia do Presidente (é pouco conhecido o episódio da jovem Companhia de Circo que foi acusada em tribunal por atentado à honra da cidade!) e a CMP deixou de atender os telefonemas dos representantes dos agentes culturais (A PLATEIA ainda recorda 4 meses de tentativas de contato, sempre com a mesma resposta: O Vereador não está.). São, enfim, os dez anos que Isabel Alves Costa classificou de deslize semântico, referindo-se à substituição da Culturporto pela PortoLazer. E eis que repentinamente, a um ano de eleições autárquicas, e com o desplante que caracteriza as piores práticas das democracias ditas populares, a CMP volta a contatar os artistas convidando-os a “sair da gaveta” e a integrar um projeto que disponibiliza equipamentos municipais, nomeadamente para a apresentação de espetáculos. A PLATEIA tem consciência que este pode ser um convite tentador para um tecido artístico fragilizado por anos de ausência de uma política cultural local, pela persistente descriminação negativa do financiamento público da economia na Região Norte e pela repentina desagregação do papel do estado central no apoio às artes, em 2011. Mas a verdade é que esta solução de curto prazo – a participação neste projeto - terá graves consequências a longo prazo, na medida em que legitima 10 anos de ausência de política cultural. E mais do que isso – e através da disparatada designação da iniciativa como “sair da gaveta” - a CMP pretende aparecer como salvadora de pessoas e projetos imaturos, sem autonomia nem capacidade empreendedora; Ou seja, a forma como a CMP comunica esta atividade induz num erro tremendo, o de que sem a CMP tudo estaria “no fundo da gaveta” e que é Rui Rio, o herói que salva o dia. Participar nesta farsa autárquica do “sair da gaveta” terá, a médio prazo, o resultado contrário ao que o seu nome indica: retirar ainda mais visibilidade e condições de trabalho aos agentes culturais, na medida da legitimação de uma década de ignorância e hostilidade. O “sair da gaveta” é um pacto com o Diabo: não se trata de sair, porque não há nada na gaveta; trata-se antes de “meter na gaveta” o que ao longo da década tem persistido em criar visibilidade e sentidos, num gesto crítico próprio da criação artística. Dizem que o melhor dos truques do Diabo foi convencer os homens que não existia.

 Carlos Costa Diretor da PLATEIA – Associação de Profissionais das Artes Cénicas