Manifesto A Cultura do desperdício II

manifesto conjunto da PLATEIA e da REDE
disponível em http://www.petitiononline.com/acultura/

Depois de assistir à assunção da cultura como um bem essencial por parte do Estado, o que conduziu à criação do Ministério da Cultura, à tentativa de criação de uma Rede de Cine-Teatros, à criação de um sistema de apoio financeiro à arte contemporânea e à estruturação embrionária de um tecido cultural diversificado e disseminado pelo país, a comunidade artística acreditou estar a testemunhar o esboçar de uma verdadeira política cultural para o sector.

Nos últimos dez anos, criadores, intelectuais, produtores e técnicos, foram parceiros activos na criação das condições para a sua materialização. Constituíram-se enquanto estruturas profissionais por todo o país (mesmo em contextos culturalmente carenciados), contribuíram para a projecção de artistas nacionais no estrangeiro, criaram entre elas dinâmicas de trabalho e de parcerias que permitiram a optimização dos recursos, participando assim no desenvolvimento de um tecido profissional activo. Finalmente, e para garantir a continuidade de espaços de diálogo e reflexão dentro e fora da comunidade, organizaram-se através de estruturas como a REDE, a PLATEIA, a RAMPA ou a PARTE. Interlocutores representativos e activos que o Estado não pode e não deve ignorar.

No entanto, num movimento inverso a este crescimento, o processo de construção de uma verdadeira política cultural tem sido continuamente minado pela sucessiva mudança de orientações políticas, com todas as suas consequências.

A falta de investimento na implementação de uma política cultural integrada que passe por medidas estruturantes, estimulando o interesse e a sensibilização da sociedade para as questões da criação contemporânea, contribuindo assim para o desenvolvimento do país, ameaça a continuidade do crescimento do tecido profissional, ao mesmo tempo que promove o desperdício de milhões de euros.

Quase um ano após o manifesto “Cultura do Desperdício”1 a então anunciada situação de ruptura confirma-se e está definitivamente instalada no país.

O Programa do XVII Governo Constitucional fazia antever a vontade de desenvolver uma política cultural integrada, com a implementação de medidas estruturantes há muito reivindicadas, ao reconhecer necessidades tão distintas, fundamentais e elementares como “retirar o sector da cultura da asfixia financeira”; “rever o regime jurídico e organizacional do sistema de apoios às artes do espectáculo”; “concluir a rede de Teatros e criar um programa de apoio à difusão cultural”; “promover medidas de sustentação do meio artístico nacional, abrangendo o ensino artístico, a formação profissional, o estatuto profissional”; “definir um novo regime de protecção social, que salvaguarde, o trabalho artístico em regime liberal”; “apostar na educação artística e na formação dos públicos”; “apostar na promoção internacional da cultura portuguesa”; “qualificar o conjunto do tecido cultural, na diversidade de formas e correntes que fazem a sua riqueza do património à criação, promovendo a sua coesão e as suas sinergias”.

Mas no terreno, a actuação do Ministério da Cultura tem vindo a promover exactamente o oposto de tudo o que anunciou, criando as condições para a destruição total do que até agora tem sobrevivido. A inexistência de uma postura de diálogo e a incapacidade de gerir o curto, o médio e o longo prazo, alicerçadas num desinvestimento e desconhecimento profundo da realidade das artes performativas em Portugal, conduziram à situação actual: a crise mais profunda na comunidade de há dez anos a esta parte.

É inaceitável a não abertura de concursos a apoios pontuais às artes do espectáculo (teatro, dança, música, transdisciplinares/pluridisciplinares) para 2005, agravada pela lentidão e leviandade com que essa decisão foi tomada e a falta de definição em relação à sua abertura para o ano de 2006.

É inaceitável que o Ministério da Cultura não dê sinais de empenhamento na criação do estatuto sócio-profissional necessário ao desenvolvimento digno da carreira dos profissionais do espectáculo. É urgente assumir a especificidade desta classe, nomeadamente no que diz respeito à intermitência no trabalho.

É inaceitável que o Ministério da Cultura se desresponsabilize das questões relacionadas com a formação profissional deslocando-as para a competência exclusiva do ME. O papel vital das estruturas independentes na formação profissional e investigação indispensáveis para o desenvolvimento do tecido artístico é completamente ignorado.

É inaceitável que o Ministério da Cultura evidencie uma preocupante desarticulação interna sobretudo na relação com o Instituto das Artes, estrutura essencial na execução da política cultural, afastando-se dos objectivos definidos na sua lei orgânica. Desperdiçando assim (mais uma vez) todo o trabalho feito anteriormente, quer pelas instituições estatais quer pelas estruturas independentes.

E, acima de tudo, é inaceitável que o Ministério da Cultura se desculpabilize com o pouco tempo de governação quando a situação de crise estava suficientemente diagnosticada antes das eleições.

Por fim, a nossa principal preocupação: o Ministério da Cultura anunciou a intenção de alterar a legislação vigente relativa ao apoio financeiro do Estado, sem avaliar a aplicação do sistema anterior e sem apresentar uma calendarização credível, pretendendo aplicá-la já nos concursos pontuais para 2006. É irrealista, dada a natural complexidade e morosidade destes processos que obrigam a consulta pública, pensar-se que até ao fim de Outubro se tenha a pretensão de rever a lei orgânica do Instituto das Artes e criar um novo decreto lei com as suas respectivas portarias regulamentares. A manutenção desta pretensão irá levar mais uma vez à sua inviabilização e criará uma ruptura sem precedentes no já de si fragilizado tecido cultural.

Os abaixo-assinados subscrevem este manifesto na esperança que o governo seja sensível às questões levantadas e exigem, especificamente, que o Estado, ao mesmo tempo que intensifica o diálogo com as associações que representam o sector para a preparação de toda a legislação necessária, se comprometa oficialmente - até ao fim deste mês - a abrir o concurso para os projectos pontuais de 2006 impreterivelmente até final de Outubro deste ano. Esta decisão é de uma importância vital para se preservar alguma dinâmica de criação, sobretudo em relação aos jovens artistas e criadores emergentes que, depois da anulação dos concursos pontuais de 2005, ficaram com a sua actividade seriamente comprometida.

A não observação das revindicações lançadas por este documento, tornará a Ministra da Cultura, a Prof.ª Doutora Isabel Pires de Lima, e o Governo que integra nos principais responsáveis pela quebra irreparável na continuidade do desenvolvimento da criação artística em Portugal, tal como se vinha já pressentindo desde 2000.


A vida cultural activa de um país depende de uma visão estratégica para o
sector que integre património e criação artística contemporânea e que torne a arte e a cultura presentes no quotidiano da população. O Estado tem de assumir o investimento na Cultura como sendo essencial ao desenvolvimento social e económico do país e a sua sustentação como um encargo natural do Estado, ao lado da Defesa, da Saúde ou da Educação.

Um país que não respeita os seus artistas, é certamente um país sem futuro.