Reflexões sobre o novo regime de apoio às artes
#1 Sobre o preocupante discurso na apresentação deste novo pacote legislativo
A Cultura não é uma despesa do Estado mas um investimento da sociedade em si própria. Julgávamos ser uma sociedade que não aceita que seja o mercado a definir as condições de sobrevivência de bens essenciais como a educação, a saúde, a defesa nacional, a agricultura ou a cultura. Julgávamos estar respaldados num programa eleitoral, ou melhor, na acumulação de sucessivos programas eleitorais, que se converteu em programa de governo onde está fixada, objectivamente, a importância da cultura como motor do desenvolvimento sócio-económico da nação bem como a necessidade de perseguir o mirífico 1% do OE para a Cultura como condição sine qua non para a conquista do patamar do desenvolvimento global. Dizemos “mirífico” porque todos nós, pelo menos os profissionais das artes cénicas, o vemos como miragem, mas sempre como miragem perseguida.
Mas a Senhora Ministra afirmou esperar que o investimento que está a ser feito na cultura permita aos criadores tornarem-se financeiramente autónomos. A Senhora Ministra pediu ao teatro independente (acreditamos que falou do teatro por ser a “fatia mais pesada” de entre as “fatias” englobadas neste pacote legislativo proposto, mas se pretenderia referir a todos: dança, música, transdisciplinares,....) que se torne verdadeiramente independente.
Tentemos imaginar o que seria o Ministro da Educação pedir o mesmo às escolas e universidades, ou o Ministro da Saúde fazer tal apelo aos Hospitais e Centros de Saúde, ou o Ministro da Agricultura lançar tal objectivo aos agricultores, ou, porque não, o Ministro da Defesa incitar os três ramos das forças armadas para tal empreendimento.
Objectivamente sobre a miragem do 1% do OE para a Cultura nada é dito ou escrito. Mas nas entrelinhas a grande linha da poupança é até audível. Porque mesmo numa velocidade que respeite os limites da(s) conjuntura(s) económica(s) não pode esta mirífica meta ser atropelada em vez de alimentada, abandonada em vez de perseguida.
Não foi este caminho que o Partido Socialista anunciou. Não é esta a política cultural que o país necessita.
#2 O concurso público e as garantias formais e substanciais da democracia
Pretende-se agora que os apoios quadrienais à criação se furtem completamente à lógica do concurso público. E sua excelência o Secretário de Estado justifica tal opção com a exaustiva descrição da celeridade e eficiência de um processo electrónico e desburocratizado. E para melhor nos fazer compreender a questão compara o novo regime com a abstracção de um concurso público burocratizado que afunda o pobre cidadão em toneladas de formulários, cópias e carimbos. Assim, o novo procedimento ignoraria as garantias formais precisamente para solidificar as garantias substanciais.
Não estamos de acordo. Um concurso público pode ser também célere, desburocratizado, transparente, eficaz e electrónico, como aliás o próprio Secretário de Estado nos demonstra no articulado em discussão. E saberá também o Senhor Secretário de Estado que os formalismos são o garante do sistema democrático. Já Karl Popper o afirmava. E quererá isto dizer que o cidadão não deseja garantias substanciais? Naturalmente que não. Aquilo que o cidadão deseja, e que a Constituição de 1976 ainda lhe garante, são os dois tipos de garantias: Formais e substanciais. O cidadão não pretende optar por uma das duas. E naturalmente só a garantia formal do concurso público pode satisfazer os desejos de transparência, igualdade de oportunidades e legalidade decorrentes do estado de direito. E não se diga, pois será por demais falacioso, que concurso público é forçosamente sinal de morosidade, burocracia e ausência de meios electrónicos.
Deve assumir-se, por isso, o concurso público como regra geral para todos os procedimentos. Sempre nos limites do CPA: A tal garantia formal de que o cidadão não aceita abdicar.
#3 O acesso aos pontuais: a perpetuação de estéticas e éticas consolidadas vs produção de tecido profissional e de propostas artísticas diversificadas
O pacote legislativo em análise propõe que o acesso aos concursos pontuais seja generalizado, nomeadamente que as estruturas com apoio quadrienal ou bienal possam candidatar-se a apoios pontuais. (Não regista o articulado proposto sequer limitação à candidatura a apoios bienais por parte dos “convidados” apoiados quadrienalmente). E esta solução parece resultar de uma engenharia que pretende evitar a dispersão dos criadores jovens por novas estruturas – sem solidez financeira – e contribuir para a sua integração em estruturas já existentes. Tal proposta, aliada a um efectivo desconhecimento sobre a acção e sobre os perfis específicos das estruturas que desenvolvem actividade contínua, parece não levar em conta a realidade profissional vivida em Portugal.
O novo regime desviará para as estruturas com desenvolvimento sustentado pelo Estado uma fatia substancial das verbas a concurso; acumulará nos mesmos poucos mais dinheiros públicos; correrá o risco de perpetuar um tecido profissional artístico restrito, brevemente anquilosado, sem vontade, necessidade ou motivação para evoluir artisticamente. Este desrespeito pela diversidade e especificidade da criação nacional é incompreensível.
Devem os concursos pontuais ficar reservados exclusivamente para projectos de experimentação e não para complemento ao subfinanciamento das entidades apoiadas em outras modalidades. E quem o diz é uma associação de profissionais que integra mais de dez estruturas com apoio sustentado.
#4 Intervenção directa do estado: Sim ou Não?
Não se entende. As estruturas de criação podem ser convidadas para entrar num processo, do princípio ao fim, gerido pelo Estado, sem intervenção de “independentes” de “reconhecido mérito” nem mesmo para a avaliação da sua “qualidade artística” (aspecto consignado em a) do nº 1 do art.º 4º do Anexo ao projecto de portaria). As “entidades de programação” não.
Aliás, fora as entidades de criação apoiadas quadrienalmente por convite, todas as modalidades de apoio prevêem completa ausência decisória do Estado (“a apreciação e selecção das propostas são efectuadas por comissões de apreciação (...) compostas por três individualidades de reconhecido mérito e competência nas áreas artísticas dos projectos apresentados, e por um técnico do IA, que preside, sem direito a intervir na votação”). A PLATEIA sempre defendeu intervenção do Estado nas decisões – únicos responsabilizáveis pela continuidade e sedimentação dos investimentos públicos e diminuição dos seus desperdícios. Mas nunca defendeu ou defenderá a avaliação por técnicos e/ou políticos da qualidade artística dos projectos; nunca a convivência simultânea de mecanismos tão díspares nestas decisões.
#5 Incongruência vs coerência / opacidade vs transparência
No preâmbulo fundamentador do projecto de Dec-Lei, não são esquecidas as residências artísticas, as itinerâncias, a internacionalização... são até valorizadas. As residências artísticas são esquecidas do princípio ao fim do articulado (ou serão as entidades que as promovem consideradas entidades de criação ou de programação?). À internacionalização é dedicado um artigo, vago, princípios definidores ausentes. Sobre itinerância refere-se, logo no supra-mencionado preâmbulo, o programa Território-Artes, não definido aqui, mas um “apoio moral”, não substantivo. Far-se-á assim a tão proclamada descentralização? Ou, bondosamente, acreditam os decisores que a farão por “convite”, por política cultural via “anúncio de abertura” de concurso (o Norte e o Porto em particular já lhe conhecem o travo amargo), promotor da fixação – artificial - de uma estrutura profissional em cada concelho? Nós, que já passámos por sucessivos programas eleitorais e de governo, vemos a coisa ao contrário: ofereça-se diversidade de propostas às populações, rentabilizem-se os dinheiros públicos investidos na “qualidade artística”, e os pólos descentralizados de criação surgirão naturalmente, de entre e de dentro das comunidades naturais como já foram surgindo. Não pode este investimento, que também foi de dinheiros públicos, ser esquecido e desperdiçado. A realidade que se constituiu já no terreno não é monocromática e não pode ser formatada em função de políticas oportunistas.
Documento produzido no âmbito da discussão pública do projecto para novo regime de apoio às artes
Porto, 11 de Julho de 2006
PLATEIA associação de profissionais das artes cénicas
A Cultura não é uma despesa do Estado mas um investimento da sociedade em si própria. Julgávamos ser uma sociedade que não aceita que seja o mercado a definir as condições de sobrevivência de bens essenciais como a educação, a saúde, a defesa nacional, a agricultura ou a cultura. Julgávamos estar respaldados num programa eleitoral, ou melhor, na acumulação de sucessivos programas eleitorais, que se converteu em programa de governo onde está fixada, objectivamente, a importância da cultura como motor do desenvolvimento sócio-económico da nação bem como a necessidade de perseguir o mirífico 1% do OE para a Cultura como condição sine qua non para a conquista do patamar do desenvolvimento global. Dizemos “mirífico” porque todos nós, pelo menos os profissionais das artes cénicas, o vemos como miragem, mas sempre como miragem perseguida.
Mas a Senhora Ministra afirmou esperar que o investimento que está a ser feito na cultura permita aos criadores tornarem-se financeiramente autónomos. A Senhora Ministra pediu ao teatro independente (acreditamos que falou do teatro por ser a “fatia mais pesada” de entre as “fatias” englobadas neste pacote legislativo proposto, mas se pretenderia referir a todos: dança, música, transdisciplinares,....) que se torne verdadeiramente independente.
Tentemos imaginar o que seria o Ministro da Educação pedir o mesmo às escolas e universidades, ou o Ministro da Saúde fazer tal apelo aos Hospitais e Centros de Saúde, ou o Ministro da Agricultura lançar tal objectivo aos agricultores, ou, porque não, o Ministro da Defesa incitar os três ramos das forças armadas para tal empreendimento.
Objectivamente sobre a miragem do 1% do OE para a Cultura nada é dito ou escrito. Mas nas entrelinhas a grande linha da poupança é até audível. Porque mesmo numa velocidade que respeite os limites da(s) conjuntura(s) económica(s) não pode esta mirífica meta ser atropelada em vez de alimentada, abandonada em vez de perseguida.
Não foi este caminho que o Partido Socialista anunciou. Não é esta a política cultural que o país necessita.
#2 O concurso público e as garantias formais e substanciais da democracia
Pretende-se agora que os apoios quadrienais à criação se furtem completamente à lógica do concurso público. E sua excelência o Secretário de Estado justifica tal opção com a exaustiva descrição da celeridade e eficiência de um processo electrónico e desburocratizado. E para melhor nos fazer compreender a questão compara o novo regime com a abstracção de um concurso público burocratizado que afunda o pobre cidadão em toneladas de formulários, cópias e carimbos. Assim, o novo procedimento ignoraria as garantias formais precisamente para solidificar as garantias substanciais.
Não estamos de acordo. Um concurso público pode ser também célere, desburocratizado, transparente, eficaz e electrónico, como aliás o próprio Secretário de Estado nos demonstra no articulado em discussão. E saberá também o Senhor Secretário de Estado que os formalismos são o garante do sistema democrático. Já Karl Popper o afirmava. E quererá isto dizer que o cidadão não deseja garantias substanciais? Naturalmente que não. Aquilo que o cidadão deseja, e que a Constituição de 1976 ainda lhe garante, são os dois tipos de garantias: Formais e substanciais. O cidadão não pretende optar por uma das duas. E naturalmente só a garantia formal do concurso público pode satisfazer os desejos de transparência, igualdade de oportunidades e legalidade decorrentes do estado de direito. E não se diga, pois será por demais falacioso, que concurso público é forçosamente sinal de morosidade, burocracia e ausência de meios electrónicos.
Deve assumir-se, por isso, o concurso público como regra geral para todos os procedimentos. Sempre nos limites do CPA: A tal garantia formal de que o cidadão não aceita abdicar.
#3 O acesso aos pontuais: a perpetuação de estéticas e éticas consolidadas vs produção de tecido profissional e de propostas artísticas diversificadas
O pacote legislativo em análise propõe que o acesso aos concursos pontuais seja generalizado, nomeadamente que as estruturas com apoio quadrienal ou bienal possam candidatar-se a apoios pontuais. (Não regista o articulado proposto sequer limitação à candidatura a apoios bienais por parte dos “convidados” apoiados quadrienalmente). E esta solução parece resultar de uma engenharia que pretende evitar a dispersão dos criadores jovens por novas estruturas – sem solidez financeira – e contribuir para a sua integração em estruturas já existentes. Tal proposta, aliada a um efectivo desconhecimento sobre a acção e sobre os perfis específicos das estruturas que desenvolvem actividade contínua, parece não levar em conta a realidade profissional vivida em Portugal.
O novo regime desviará para as estruturas com desenvolvimento sustentado pelo Estado uma fatia substancial das verbas a concurso; acumulará nos mesmos poucos mais dinheiros públicos; correrá o risco de perpetuar um tecido profissional artístico restrito, brevemente anquilosado, sem vontade, necessidade ou motivação para evoluir artisticamente. Este desrespeito pela diversidade e especificidade da criação nacional é incompreensível.
Devem os concursos pontuais ficar reservados exclusivamente para projectos de experimentação e não para complemento ao subfinanciamento das entidades apoiadas em outras modalidades. E quem o diz é uma associação de profissionais que integra mais de dez estruturas com apoio sustentado.
#4 Intervenção directa do estado: Sim ou Não?
Não se entende. As estruturas de criação podem ser convidadas para entrar num processo, do princípio ao fim, gerido pelo Estado, sem intervenção de “independentes” de “reconhecido mérito” nem mesmo para a avaliação da sua “qualidade artística” (aspecto consignado em a) do nº 1 do art.º 4º do Anexo ao projecto de portaria). As “entidades de programação” não.
Aliás, fora as entidades de criação apoiadas quadrienalmente por convite, todas as modalidades de apoio prevêem completa ausência decisória do Estado (“a apreciação e selecção das propostas são efectuadas por comissões de apreciação (...) compostas por três individualidades de reconhecido mérito e competência nas áreas artísticas dos projectos apresentados, e por um técnico do IA, que preside, sem direito a intervir na votação”). A PLATEIA sempre defendeu intervenção do Estado nas decisões – únicos responsabilizáveis pela continuidade e sedimentação dos investimentos públicos e diminuição dos seus desperdícios. Mas nunca defendeu ou defenderá a avaliação por técnicos e/ou políticos da qualidade artística dos projectos; nunca a convivência simultânea de mecanismos tão díspares nestas decisões.
#5 Incongruência vs coerência / opacidade vs transparência
No preâmbulo fundamentador do projecto de Dec-Lei, não são esquecidas as residências artísticas, as itinerâncias, a internacionalização... são até valorizadas. As residências artísticas são esquecidas do princípio ao fim do articulado (ou serão as entidades que as promovem consideradas entidades de criação ou de programação?). À internacionalização é dedicado um artigo, vago, princípios definidores ausentes. Sobre itinerância refere-se, logo no supra-mencionado preâmbulo, o programa Território-Artes, não definido aqui, mas um “apoio moral”, não substantivo. Far-se-á assim a tão proclamada descentralização? Ou, bondosamente, acreditam os decisores que a farão por “convite”, por política cultural via “anúncio de abertura” de concurso (o Norte e o Porto em particular já lhe conhecem o travo amargo), promotor da fixação – artificial - de uma estrutura profissional em cada concelho? Nós, que já passámos por sucessivos programas eleitorais e de governo, vemos a coisa ao contrário: ofereça-se diversidade de propostas às populações, rentabilizem-se os dinheiros públicos investidos na “qualidade artística”, e os pólos descentralizados de criação surgirão naturalmente, de entre e de dentro das comunidades naturais como já foram surgindo. Não pode este investimento, que também foi de dinheiros públicos, ser esquecido e desperdiçado. A realidade que se constituiu já no terreno não é monocromática e não pode ser formatada em função de políticas oportunistas.
Documento produzido no âmbito da discussão pública do projecto para novo regime de apoio às artes
Porto, 11 de Julho de 2006
PLATEIA associação de profissionais das artes cénicas